sexta-feira, 10 de abril de 2015

Solidão

Ontem ela voltou. Ela bateu a minha porta um dia depois dele ter partido. Eu não sei muito bem como ela conseguiu me encontrar, durante todos aqueles anos eu me certifiquei, me certifiquei de fazer tudo certo, cuidadosamente, sem deixar pistas ou rastos que pudessem ser seguidos. Parece até tempo perdido, eu me descuidei, por um minuto me descuidei, e deixei ele só. FALHEI. Foi aí que ela veio, sem pressa para que eu notasse ela se aproximar. Senti seu cheiro cortante de mar salgado, reconheci sua face inexpressiva, revi suas vestes opacas. Sibilou ao se anunciar, ela era esperta, precisava de ter seu momento de contemplação antes de me dominar. Faz calor lá fora, frio aqui dentro. Eu sei que é ela, não satisfeita em possuir aquela parte de mim, congelar e arrancá-la, como parte de sua vingança, ela se instalou, em todos os cantos, lugares, tectos e retratos. No final, se certificou de trancar todas as portas e janelas para que eu jamais saísse. 

Então passo os meus dias aqui, o que não é de todo mau. Reservo meu tempo, ou melhor, a falta de noção do mesmo, só pra pensar nele. Lembro de tudo, de cada milésimo, cada momento a dois e a sois. Lembro daquele sorriso matador, que me deixava em ebulição . Lembro de sua pele, negra, branca, amarela, vermelha, parda, eu lembro bem. Lembro de todas as vezes que juntos, no telhado, olhamos para as estrelas, fizemos juras, planos, e comemos o fruto da macieira que daquela altura, ficava bem ao nosso lado. Também lembro do seu olhar, de como revelava tudo com tanto brilho, sentimento, significado. E do seu corpo, esbelto, quente, nu, coberto, vivo, vivo, eu lembro. 

Na primeira vez que ela veio até mim, eu era apenas uma criança, ela não podia ter se aproveitado da minha fraqueza. COBARDE. E pior, eu chorava, chorava tanto, berrava de modo ensurdecedor e mesmo assim ela demorou anos para se ir embora. Além do mais, o facto de eu não ter lembranças deles a alimentava. Diferente de agora, naquela época eu não tinha válvulas de escape, sabia de momentos felizes e coruscantes vividos com eles mas simplesmente não conseguia me lembrar, de modo que só me restava olhar para ela, desafiando-a para que se fosse embora. Engraçado, ela não me amedrontava, não me assustava nem nada. Apenas olhava pra mim, inexpressiva e vazia. Não havia medo ou horror, havia apenas esse espaço, oco, perturbador e inquietante, que anos depois, só ele conseguiu cobrir e que eu fracassei em não manter.

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