Então passo os meus dias aqui, o que não é de todo mau. Reservo meu tempo, ou melhor, a falta de noção do mesmo, só pra pensar nele. Lembro de tudo, de cada milésimo, cada momento a dois e a sois. Lembro daquele sorriso matador, que me deixava em ebulição . Lembro de sua pele, negra, branca, amarela, vermelha, parda, eu lembro bem. Lembro de todas as vezes que juntos, no telhado, olhamos para as estrelas, fizemos juras, planos, e comemos o fruto da macieira que daquela altura, ficava bem ao nosso lado. Também lembro do seu olhar, de como revelava tudo com tanto brilho, sentimento, significado. E do seu corpo, esbelto, quente, nu, coberto, vivo, vivo, eu lembro.
Na primeira vez que ela veio até mim, eu era apenas uma criança, ela não podia ter se aproveitado da minha fraqueza. COBARDE. E pior, eu chorava, chorava tanto, berrava de modo ensurdecedor e mesmo assim ela demorou anos para se ir embora. Além do mais, o facto de eu não ter lembranças deles a alimentava. Diferente de agora, naquela época eu não tinha válvulas de escape, sabia de momentos felizes e coruscantes vividos com eles mas simplesmente não conseguia me lembrar, de modo que só me restava olhar para ela, desafiando-a para que se fosse embora. Engraçado, ela não me amedrontava, não me assustava nem nada. Apenas olhava pra mim, inexpressiva e vazia. Não havia medo ou horror, havia apenas esse espaço, oco, perturbador e inquietante, que anos depois, só ele conseguiu cobrir e que eu fracassei em não manter.
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